WhatsApp, sozinho, não muda o mundo

08/11/2018 14:58

 


Teó­rico da co­mu­ni­cação, o ca­na­dense Marshall Ma­cLuhan tem vindo à baila de novo, com seu de­ter­mi­nismo tec­no­ló­gico, pois em função das novas tec­no­lo­gias que estão trans­for­mando o mundo muitos es­tu­di­osos da co­mu­ni­cação têm re­vi­si­tado suas teses. Ele es­creveu um livro em 1964 que trazia para o de­bate a questão dos meios de co­mu­ni­cação, sendo esses meios apre­sen­tados como a pró­pria men­sagem. Se­gundo ele o meio no qual a co­mu­ni­cação é pro­pa­gada acaba sendo ele mesmo um ins­tru­mento im­por­tante de mu­dança das re­la­ções so­ciais. Um exemplo usado foi o da es­trada de ferro. 

Sua dis­se­mi­nação, li­gando os lu­gares, di­mi­nuindo o tempo para a che­gada de uma carta, por exemplo, acabou ex­tra­po­lando seu sen­tido de co­mu­ni­cação e al­te­rando a vida das gentes em todas as es­feras da exis­tência. As tec­no­lo­gias, então, para McLuhan, mu­davam a es­cala, o ritmo e o pa­drão da vida hu­mana. Assim foi o jornal, o rádio e a te­le­visão. Ele acre­di­tava que se devia es­tudar mais o meio e não apenas a men­sagem que ele dis­se­mina, como fa­ziam os teó­ricos da época.

Bom, McLuhan es­tava certo na ideia de que se de­veria es­tudar também o meio, mas er­rava em pensar que só olhando para o meio se po­deria chegar a uma aná­lise cor­reta da re­a­li­dade que en­volve todo o pro­cesso co­mu­ni­ca­tivo. Não seria assim tão sim­plista. A re­a­li­dade é com­plexa. Mas, como é comum aos fun­ci­o­na­listas, a ten­dência sempre foi se­parar as partes, re­jei­tando a uni­ver­sa­li­dade da aná­lise.

Hoje, 2018, es­tamos no meio de um fu­racão tec­no­ló­gico. Os meios de co­mu­ni­cação foram al­te­rados sig­ni­fi­ca­ti­va­mente, pro­vo­cando, desde a po­pu­la­ri­zação da in­ternet, uma mu­dança con­creta na tem­pe­ra­tura so­cial e po­lí­tica do pla­neta. Uma pessoa com um ce­lular es­perto na mão está co­nec­tada no mundo e não apenas re­cebe in­for­ma­ções, mas também produz e com­par­tilha. Tudo isso numa ve­lo­ci­dade alu­ci­nante. 

Se fôs­semos se­guir a pro­posta de McLuhan – ana­li­sando apenas o meio - iríamos ve­ri­ficar parte das im­por­tantes mu­danças que acon­te­ceram na so­ci­e­dade com a che­gada dessas tec­no­lo­gias. A vida ficou mais rá­pida, o tempo de tudo ace­lerou, as res­postas são ins­tan­tâ­neas, não há mais se­pa­ração entre o pú­blico e o pri­vado, o in­di­vi­du­a­lismo exa­cerbou, a ali­e­nação cresceu e a fron­teira entre a re­a­li­dade e a ficção vai de­sa­pa­re­cendo. A in­ternet tem se trans­for­mado na via prin­cipal da co­mu­ni­cação e o ce­lular es­perto é o meio oni­pre­sente na vida de um nú­mero gi­gante de seres hu­manos. 

Mas, para além do meio, há uma série de va­riá­veis que também pre­cisam atenção. Como, por exemplo, a pos­si­bi­li­dade do co­nhe­ci­mento con­creto da re­a­li­dade e a edu­cação. Lembro que nos ve­lhos tempos de dis­cussão sobre a in­fluência da te­le­visão, ainda no sé­culo pas­sado, Um­berto Eco in­sistia no fato de que se de­ve­riam criar es­paços para o que ele cha­mava de “al­fa­be­ti­zação para a te­le­visão”. En­tendia o pen­sador ita­liano que se as pes­soas co­nhe­cessem as ar­ti­ma­nhas da te­le­visão te­riam muito mais con­di­ções de se imu­nizar contra a ma­ni­pu­lação, afinal, no­tí­cias falsas sempre foram cons­tantes nos meios co­mer­ciais, sob o con­trole da classe do­mi­nante. 

Atu­al­mente, a chance de uma pessoa ser ma­ni­pu­lada pela in­for­mação falsa cresceu de ma­neira as­sus­ta­dora. E isso se deve jus­ta­mente à re­vo­lução tec­no­ló­gica que co­locou em cena os novos equi­pa­mentos. Mas, é claro que a culpa da ma­ni­pu­lação não é do ce­lular es­perto. De novo, ques­tões como edu­cação, co­nhe­ci­mento e poder econô­mico pre­cisam ser agre­gadas à aná­lise. 

Uma pessoa que com­pre­enda como se dá o pro­cesso de do­mi­nação no mundo, edu­cada para o uso das tec­no­lo­gias, terá mais chance de na­vegar nesse mar de in­for­mação que jorra a uma ve­lo­ci­dade es­ton­te­ante. O pen­sa­mento crí­tico não brota como má­gica. Pre­cisa de muita lei­tura, muita re­flexão, muito de­bate. Sem isso, a pessoa segue o fio da con­fi­ança. “Se foi fu­lano ou bel­trano, em quem confio, que disse, tá dito”. 

A con­fi­ança é um ato de fé. Não é um pro­cesso de co­nhe­ci­mento. Mas, ao que pa­rece, é o que di­rige a vida in­ter­né­tica nos dias atuais.

As elei­ções bra­si­leiras estão mos­trando de ma­neira bem clara como isso acon­tece. Existe o meio, que fa­tal­mente muda a vida de toda a gente, mas também existe a men­sagem fa­bri­cada e existe o poder econô­mico ga­ran­tindo que essa men­sagem feita de men­tira, chegue aos ce­lu­lares es­pertos das pes­soas, pela via da con­fi­ança: os grupos de amigos e de fa­mília. 

Com isso, ade­rimos mais um ele­mento de aná­lise, que é a do poder econô­mico e como ele pode ser de­ci­sivo num pro­cesso e numa si­tu­ação em que as pes­soas es­tejam com­ple­ta­mente des­po­jadas da fer­ra­menta do pen­sa­mento crí­tico. A guer­rilha co­mu­ni­ca­ci­onal im­ple­men­tada no Brasil não diz res­peito apenas a mi­lhões de pes­soas que estão eno­jadas com a po­lí­tica e a cor­rupção e, por­tanto, ficam sen­sí­veis aos dis­cursos mo­ra­listas. 

Estas pes­soas são, de fato, im­por­tantes re­pro­du­toras das men­tiras cri­adas, mas sem a fa­bri­cação dessas men­tiras, no texto e na imagem, elas cer­ta­mente com­par­ti­lha­riam em seus grupos de con­fi­ança ou­tras men­sa­gens. O fato é que existem em­presas es­pe­ci­a­li­zadas em fa­bricar men­tiras, existem em­presas que roubam os dados dis­po­ni­bi­li­zados nas redes so­ciais e existem em­presas cujo tra­balho é dis­parar men­sa­gens para todos esses dados rou­bados e/ou com­prados. 

Todas são em­presas, logo, pre­cisam ser pagas para fazer o ser­viço. E são pagas por quem? Pelos em­pre­sá­rios que serão be­ne­fi­ci­ados com a si­tu­ação que as men­tiras cri­arão. É o cír­culo vi­cioso da do­mi­nação. Não se trata de fa­bri­cação de pós-ver­dades, como dizem al­guns. É a men­tira mesmo, a boa e velha men­tira que sempre venceu as “guerras” de todo o tipo. E os meios de co­mu­ni­cação são os veí­culos per­feitos para a dis­se­mi­nação dessas men­tiras. 

Quem in­siste em dizer que os meios não têm todo esse poder, basta olhar para a his­tória. Guerras são pro­du­zidas a partir da se­me­a­dura da men­tira nos meios de co­mu­ni­cação de massa. Orson Welles co­locou os Es­tados Unidos em es­tado de his­teria com a “Guerra dos Mundos”, uma his­tória de ficção de Ge­orge Wells  trans­mi­tida pelo rádio como se fosse uma co­ber­tura jor­na­lís­tica da che­gada de ex­tra­ter­res­tres, e chegou a levar pes­soas ao sui­cídio. 

Na­queles dias, em 1938, o rádio era o nosso ua­ti­zapi. Mais no pre­sente po­demos falar do fa­mi­ge­rado ataque dos EUA aos Iraque, de­pois de ino­cular o mundo in­teiro com a men­tira de que lá havia armas quí­micas que po­de­riam des­truir o pla­neta.

Na atu­a­li­dade a in­ternet po­ten­ci­a­liza ainda mais esse pro­cesso de fa­bri­cação de men­tiras. Foi assim na cha­mada “pri­ma­vera árabe”, com a mas­siva par­ti­ci­pação do You­tube e do Fa­ce­book, cri­ando e dis­se­mi­nando ví­deos falsos que cons­ti­tuíram a “ver­dade” re­que­rida pelos Es­tados Unidos para des­truir vá­rios países em sequência. A men­tira tor­nando-se ver­dade. Não é pós-ver­dade, é men­tira mesmo.

De novo é im­por­tante frisar: os meios não são res­pon­sá­veis por isso. Os res­pon­sá­veis são os go­vernos, as pes­soas, os grupos de poder. Ju­lian As­sange des­vendou isso com o seu Wi­ki­Leaks, e está com a ca­beça à prêmio, sem poder sair da em­bai­xada do Equador em Lon­dres, onde está preso, porque se botar o pé na rua é en­car­ce­rado pelos Es­tados Unidos, que o con­si­dera um “ter­ro­rista”. Quantos no mundo creem nisso? Outro que re­velou como se dá o pro­cesso de ma­ni­pu­lação das mentes com a apro­pri­ação de dados via fa­ce­book e redes so­ciais é Edward Snowden, igual­mente ca­çado pelos EUA. A ver­dade está aí, às claras, mas poucos con­se­guem ver. 

Óbvio que as pes­soas sub­me­tidas à ma­ni­pu­lação não são campos va­zios, no qual se plantam as men­tiras e elas por si só co­mandam as vidas. Não é tão sim­ples assim. As pes­soas têm suas mentes bom­bar­de­adas diu­tur­na­mente pela co­mu­ni­cação da classe do­mi­nante, seja pelo jornal, rádio, te­le­visão, out­door, cartaz no ônibus etc... São meios que existem fora da bolha in­ter­né­tica e que ainda têm força e in­ci­dência, por sua sis­te­ma­ti­ci­dade. 

Tudo isso vai adu­bando a mente para que as men­tiras en­con­trem campo fértil onde se ins­talar e crescer. Nesse sen­tido, o ce­lular es­perto, que é só um meio – po­de­roso meio - acaba ser­vindo para amal­gamar e po­ten­ci­a­lizar todo esse bom­bar­deio ide­o­ló­gico ne­ces­sário para manter o es­tado de coisas.

No caso do Brasil, a se­me­a­dura do ódio ao PT veio sendo feita desde o se­gundo man­dato de Lula, cres­cendo ex­po­nen­ci­al­mente a partir de Dilma Rous­seff. Foi sis­te­má­tico e co­ti­diano e en­con­trou am­paro na ma­te­ri­a­li­dade da vida das pes­soas, que co­meçou a ruir também em função da crise econô­mica. 

An­co­rados em meias-ver­dades, como os casos de cor­rupção – al­guns ver­da­deiros, ou­tros não – os grupos de poder foram fer­ti­li­zando as mentes e pre­pa­rando o ter­reno para as elei­ções deste ano. O que não es­pe­ravam era que um can­di­dato, fora do cir­cuito tra­di­ci­onal dos par­tidos e dos grupos de poder, fosse sin­te­tizar de ma­neira tão bem aca­bada toda a carga de pre­con­ceito, mo­ra­lismo, medo e ódio que a classe do­mi­nante, de ma­neira tão pro­fis­si­onal, in­siste em manter viva para ma­ni­pular as pes­soas se­gundo seus in­te­resses. 

Não é sem razão que a velha elite, apesar do susto ini­cial, agora já vai se apro­xi­mando do can­di­dato fas­cista, porque re­co­nhece que ele hoje co­manda as massas e isso é tudo que in­te­ressa. Assim, caso Bol­so­naro vença as elei­ções, não será sur­presa ver a di­reita tra­di­ci­onal go­ver­nando junto, atu­ando no­va­mente no sen­tido de se­mear men­tiras para jus­ti­ficar a sis­te­má­tica do­mi­nação. A culpa dos de­sas­tres go­ver­na­men­tais sempre será de outro e o re­per­tório de men­tiras é sempre re­no­vado, com o au­xílio se­guro dos meios de co­mu­ni­cação, todos eles. 

Contra isso, há que rein­ventar as formas de in­ter­venção. Lem­brando sempre que é a con­fi­ança que co­manda. Por isso que a re­lação pessoa/pessoa não pode deixar de existir. É a con­fi­ança pes­soal que de­ter­mina a fé das gentes. Nesse sen­tido, in­sisto no bom e velho tra­balho de base, quando o olho no olho, o co­nhe­ci­mento in­ter­pes­soal, amo­roso e com­pro­me­tido, faz a di­fe­rença. 

Hoje, os grupos de ua­ti­zapi que dis­se­minam ódio são grupos for­mados por pes­soas que se co­nhecem, que tem laços afe­tivos e con­fiam umas nas ou­tras. Logo, o ua­ti­zapi é só o meio que as uni­fica e co­munga. Ele, so­zinho, não pro­voca es­tragos. É toda essa trama que, usando o ua­ti­zapi, se con­so­lida.

Cor­rendo o risco de ser apon­tada como uma ide­a­lista ro­mân­tica, in­sisto no tra­balho de base, que foi aban­do­nado pelos par­tidos. Um tra­balho de­sen­vol­vido por pes­soas bem for­madas, pre­pa­radas, ar­madas de co­nhe­ci­mento crí­tico. 

A roda da vida não para e acon­teça o que acon­tecer, a luta segue. Re­sis­timos e re­sis­ti­remos. 


Elaine Ta­vares é jor­na­lista e co­la­bo­rador do Ins­ti­tuto de Es­tudos La­tino-Ame­ri­canos da UFSC.

Fonte: www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/13532-whatsapp-sozinho-nao-muda-o-mundo


Teó­rico da co­mu­ni­cação, o ca­na­dense Marshall Ma­cLuhan tem vindo à baila de novo, com seu de­ter­mi­nismo tec­no­ló­gico, pois em função das novas tec­no­lo­gias que estão trans­for­mando o mundo muitos es­tu­di­osos da co­mu­ni­cação têm re­vi­si­tado suas teses. Ele es­creveu um livro em 1964 que trazia para o de­bate a questão dos meios de co­mu­ni­cação, sendo esses meios apre­sen­tados como a pró­pria men­sagem. Se­gundo ele o meio no qual a co­mu­ni­cação é pro­pa­gada acaba sendo ele mesmo um ins­tru­mento im­por­tante de mu­dança das re­la­ções so­ciais. Um exemplo usado foi o da es­trada de ferro. 

Sua dis­se­mi­nação, li­gando os lu­gares, di­mi­nuindo o tempo para a che­gada de uma carta, por exemplo, acabou ex­tra­po­lando seu sen­tido de co­mu­ni­cação e al­te­rando a vida das gentes em todas as es­feras da exis­tência. As tec­no­lo­gias, então, para McLuhan, mu­davam a es­cala, o ritmo e o pa­drão da vida hu­mana. Assim foi o jornal, o rádio e a te­le­visão. Ele acre­di­tava que se devia es­tudar mais o meio e não apenas a men­sagem que ele dis­se­mina, como fa­ziam os teó­ricos da época.

Bom, McLuhan es­tava certo na ideia de que se de­veria es­tudar também o meio, mas er­rava em pensar que só olhando para o meio se po­deria chegar a uma aná­lise cor­reta da re­a­li­dade que en­volve todo o pro­cesso co­mu­ni­ca­tivo. Não seria assim tão sim­plista. A re­a­li­dade é com­plexa. Mas, como é comum aos fun­ci­o­na­listas, a ten­dência sempre foi se­parar as partes, re­jei­tando a uni­ver­sa­li­dade da aná­lise.

Hoje, 2018, es­tamos no meio de um fu­racão tec­no­ló­gico. Os meios de co­mu­ni­cação foram al­te­rados sig­ni­fi­ca­ti­va­mente, pro­vo­cando, desde a po­pu­la­ri­zação da in­ternet, uma mu­dança con­creta na tem­pe­ra­tura so­cial e po­lí­tica do pla­neta. Uma pessoa com um ce­lular es­perto na mão está co­nec­tada no mundo e não apenas re­cebe in­for­ma­ções, mas também produz e com­par­tilha. Tudo isso numa ve­lo­ci­dade alu­ci­nante. 

Se fôs­semos se­guir a pro­posta de McLuhan – ana­li­sando apenas o meio - iríamos ve­ri­ficar parte das im­por­tantes mu­danças que acon­te­ceram na so­ci­e­dade com a che­gada dessas tec­no­lo­gias. A vida ficou mais rá­pida, o tempo de tudo ace­lerou, as res­postas são ins­tan­tâ­neas, não há mais se­pa­ração entre o pú­blico e o pri­vado, o in­di­vi­du­a­lismo exa­cerbou, a ali­e­nação cresceu e a fron­teira entre a re­a­li­dade e a ficção vai de­sa­pa­re­cendo. A in­ternet tem se trans­for­mado na via prin­cipal da co­mu­ni­cação e o ce­lular es­perto é o meio oni­pre­sente na vida de um nú­mero gi­gante de seres hu­manos. 

Mas, para além do meio, há uma série de va­riá­veis que também pre­cisam atenção. Como, por exemplo, a pos­si­bi­li­dade do co­nhe­ci­mento con­creto da re­a­li­dade e a edu­cação. Lembro que nos ve­lhos tempos de dis­cussão sobre a in­fluência da te­le­visão, ainda no sé­culo pas­sado, Um­berto Eco in­sistia no fato de que se de­ve­riam criar es­paços para o que ele cha­mava de “al­fa­be­ti­zação para a te­le­visão”. En­tendia o pen­sador ita­liano que se as pes­soas co­nhe­cessem as ar­ti­ma­nhas da te­le­visão te­riam muito mais con­di­ções de se imu­nizar contra a ma­ni­pu­lação, afinal, no­tí­cias falsas sempre foram cons­tantes nos meios co­mer­ciais, sob o con­trole da classe do­mi­nante. 

Atu­al­mente, a chance de uma pessoa ser ma­ni­pu­lada pela in­for­mação falsa cresceu de ma­neira as­sus­ta­dora. E isso se deve jus­ta­mente à re­vo­lução tec­no­ló­gica que co­locou em cena os novos equi­pa­mentos. Mas, é claro que a culpa da ma­ni­pu­lação não é do ce­lular es­perto. De novo, ques­tões como edu­cação, co­nhe­ci­mento e poder econô­mico pre­cisam ser agre­gadas à aná­lise. 

Uma pessoa que com­pre­enda como se dá o pro­cesso de do­mi­nação no mundo, edu­cada para o uso das tec­no­lo­gias, terá mais chance de na­vegar nesse mar de in­for­mação que jorra a uma ve­lo­ci­dade es­ton­te­ante. O pen­sa­mento crí­tico não brota como má­gica. Pre­cisa de muita lei­tura, muita re­flexão, muito de­bate. Sem isso, a pessoa segue o fio da con­fi­ança. “Se foi fu­lano ou bel­trano, em quem confio, que disse, tá dito”. 

A con­fi­ança é um ato de fé. Não é um pro­cesso de co­nhe­ci­mento. Mas, ao que pa­rece, é o que di­rige a vida in­ter­né­tica nos dias atuais.

As elei­ções bra­si­leiras estão mos­trando de ma­neira bem clara como isso acon­tece. Existe o meio, que fa­tal­mente muda a vida de toda a gente, mas também existe a men­sagem fa­bri­cada e existe o poder econô­mico ga­ran­tindo que essa men­sagem feita de men­tira, chegue aos ce­lu­lares es­pertos das pes­soas, pela via da con­fi­ança: os grupos de amigos e de fa­mília. 

Com isso, ade­rimos mais um ele­mento de aná­lise, que é a do poder econô­mico e como ele pode ser de­ci­sivo num pro­cesso e numa si­tu­ação em que as pes­soas es­tejam com­ple­ta­mente des­po­jadas da fer­ra­menta do pen­sa­mento crí­tico. A guer­rilha co­mu­ni­ca­ci­onal im­ple­men­tada no Brasil não diz res­peito apenas a mi­lhões de pes­soas que estão eno­jadas com a po­lí­tica e a cor­rupção e, por­tanto, ficam sen­sí­veis aos dis­cursos mo­ra­listas. 

Estas pes­soas são, de fato, im­por­tantes re­pro­du­toras das men­tiras cri­adas, mas sem a fa­bri­cação dessas men­tiras, no texto e na imagem, elas cer­ta­mente com­par­ti­lha­riam em seus grupos de con­fi­ança ou­tras men­sa­gens. O fato é que existem em­presas es­pe­ci­a­li­zadas em fa­bricar men­tiras, existem em­presas que roubam os dados dis­po­ni­bi­li­zados nas redes so­ciais e existem em­presas cujo tra­balho é dis­parar men­sa­gens para todos esses dados rou­bados e/ou com­prados. 

Todas são em­presas, logo, pre­cisam ser pagas para fazer o ser­viço. E são pagas por quem? Pelos em­pre­sá­rios que serão be­ne­fi­ci­ados com a si­tu­ação que as men­tiras cri­arão. É o cír­culo vi­cioso da do­mi­nação. Não se trata de fa­bri­cação de pós-ver­dades, como dizem al­guns. É a men­tira mesmo, a boa e velha men­tira que sempre venceu as “guerras” de todo o tipo. E os meios de co­mu­ni­cação são os veí­culos per­feitos para a dis­se­mi­nação dessas men­tiras. 

Quem in­siste em dizer que os meios não têm todo esse poder, basta olhar para a his­tória. Guerras são pro­du­zidas a partir da se­me­a­dura da men­tira nos meios de co­mu­ni­cação de massa. Orson Welles co­locou os Es­tados Unidos em es­tado de his­teria com a “Guerra dos Mundos”, uma his­tória de ficção de Ge­orge Wells  trans­mi­tida pelo rádio como se fosse uma co­ber­tura jor­na­lís­tica da che­gada de ex­tra­ter­res­tres, e chegou a levar pes­soas ao sui­cídio. 

Na­queles dias, em 1938, o rádio era o nosso ua­ti­zapi. Mais no pre­sente po­demos falar do fa­mi­ge­rado ataque dos EUA aos Iraque, de­pois de ino­cular o mundo in­teiro com a men­tira de que lá havia armas quí­micas que po­de­riam des­truir o pla­neta.

Na atu­a­li­dade a in­ternet po­ten­ci­a­liza ainda mais esse pro­cesso de fa­bri­cação de men­tiras. Foi assim na cha­mada “pri­ma­vera árabe”, com a mas­siva par­ti­ci­pação do You­tube e do Fa­ce­book, cri­ando e dis­se­mi­nando ví­deos falsos que cons­ti­tuíram a “ver­dade” re­que­rida pelos Es­tados Unidos para des­truir vá­rios países em sequência. A men­tira tor­nando-se ver­dade. Não é pós-ver­dade, é men­tira mesmo.

De novo é im­por­tante frisar: os meios não são res­pon­sá­veis por isso. Os res­pon­sá­veis são os go­vernos, as pes­soas, os grupos de poder. Ju­lian As­sange des­vendou isso com o seu Wi­ki­Leaks, e está com a ca­beça à prêmio, sem poder sair da em­bai­xada do Equador em Lon­dres, onde está preso, porque se botar o pé na rua é en­car­ce­rado pelos Es­tados Unidos, que o con­si­dera um “ter­ro­rista”. Quantos no mundo creem nisso? Outro que re­velou como se dá o pro­cesso de ma­ni­pu­lação das mentes com a apro­pri­ação de dados via fa­ce­book e redes so­ciais é Edward Snowden, igual­mente ca­çado pelos EUA. A ver­dade está aí, às claras, mas poucos con­se­guem ver. 

Óbvio que as pes­soas sub­me­tidas à ma­ni­pu­lação não são campos va­zios, no qual se plantam as men­tiras e elas por si só co­mandam as vidas. Não é tão sim­ples assim. As pes­soas têm suas mentes bom­bar­de­adas diu­tur­na­mente pela co­mu­ni­cação da classe do­mi­nante, seja pelo jornal, rádio, te­le­visão, out­door, cartaz no ônibus etc... São meios que existem fora da bolha in­ter­né­tica e que ainda têm força e in­ci­dência, por sua sis­te­ma­ti­ci­dade. 

Tudo isso vai adu­bando a mente para que as men­tiras en­con­trem campo fértil onde se ins­talar e crescer. Nesse sen­tido, o ce­lular es­perto, que é só um meio – po­de­roso meio - acaba ser­vindo para amal­gamar e po­ten­ci­a­lizar todo esse bom­bar­deio ide­o­ló­gico ne­ces­sário para manter o es­tado de coisas.

No caso do Brasil, a se­me­a­dura do ódio ao PT veio sendo feita desde o se­gundo man­dato de Lula, cres­cendo ex­po­nen­ci­al­mente a partir de Dilma Rous­seff. Foi sis­te­má­tico e co­ti­diano e en­con­trou am­paro na ma­te­ri­a­li­dade da vida das pes­soas, que co­meçou a ruir também em função da crise econô­mica. 

An­co­rados em meias-ver­dades, como os casos de cor­rupção – al­guns ver­da­deiros, ou­tros não – os grupos de poder foram fer­ti­li­zando as mentes e pre­pa­rando o ter­reno para as elei­ções deste ano. O que não es­pe­ravam era que um can­di­dato, fora do cir­cuito tra­di­ci­onal dos par­tidos e dos grupos de poder, fosse sin­te­tizar de ma­neira tão bem aca­bada toda a carga de pre­con­ceito, mo­ra­lismo, medo e ódio que a classe do­mi­nante, de ma­neira tão pro­fis­si­onal, in­siste em manter viva para ma­ni­pular as pes­soas se­gundo seus in­te­resses. 

Não é sem razão que a velha elite, apesar do susto ini­cial, agora já vai se apro­xi­mando do can­di­dato fas­cista, porque re­co­nhece que ele hoje co­manda as massas e isso é tudo que in­te­ressa. Assim, caso Bol­so­naro vença as elei­ções, não será sur­presa ver a di­reita tra­di­ci­onal go­ver­nando junto, atu­ando no­va­mente no sen­tido de se­mear men­tiras para jus­ti­ficar a sis­te­má­tica do­mi­nação. A culpa dos de­sas­tres go­ver­na­men­tais sempre será de outro e o re­per­tório de men­tiras é sempre re­no­vado, com o au­xílio se­guro dos meios de co­mu­ni­cação, todos eles. 

Contra isso, há que rein­ventar as formas de in­ter­venção. Lem­brando sempre que é a con­fi­ança que co­manda. Por isso que a re­lação pessoa/pessoa não pode deixar de existir. É a con­fi­ança pes­soal que de­ter­mina a fé das gentes. Nesse sen­tido, in­sisto no bom e velho tra­balho de base, quando o olho no olho, o co­nhe­ci­mento in­ter­pes­soal, amo­roso e com­pro­me­tido, faz a di­fe­rença. 

Hoje, os grupos de ua­ti­zapi que dis­se­minam ódio são grupos for­mados por pes­soas que se co­nhecem, que tem laços afe­tivos e con­fiam umas nas ou­tras. Logo, o ua­ti­zapi é só o meio que as uni­fica e co­munga. Ele, so­zinho, não pro­voca es­tragos. É toda essa trama que, usando o ua­ti­zapi, se con­so­lida.

Cor­rendo o risco de ser apon­tada como uma ide­a­lista ro­mân­tica, in­sisto no tra­balho de base, que foi aban­do­nado pelos par­tidos. Um tra­balho de­sen­vol­vido por pes­soas bem for­madas, pre­pa­radas, ar­madas de co­nhe­ci­mento crí­tico. 

A roda da vida não para e acon­teça o que acon­tecer, a luta segue. Re­sis­timos e re­sis­ti­remos. 


Elaine Ta­vares é jor­na­lista e co­la­bo­rador do Ins­ti­tuto de Es­tudos La­tino-Ame­ri­canos da UFSC.