Pandemia da pandemia: a próxima tempestade

14/03/2023 08:11

Gabriel Brito, Outra Saúde

09/03/2023

O Brasil con­ta­bi­liza ofi­ci­al­mente 698 mil mortes e 37 mi­lhões de in­fec­ções pelo novo co­ro­na­vírus, o Sars-CoV 2; 80% da po­pu­lação com­pletou o pri­meiro es­quema va­cinal, en­quanto 50,52% re­cebeu ao menos uma dose de re­forço. No en­tanto, uma outra pan­demia se oculta da per­cepção de uma so­ci­e­dade que re­tomou suas ati­vi­dades e in­te­ra­ções de modo pra­ti­ca­mente in­te­gral. Es­tamos às portas do que di­versos es­pe­ci­a­listas chamam de “pan­demia da pan­demia”.

Trata-se, re­su­mi­da­mente, de toda uma de­manda por ser­viços de saúde re­pre­sada nestes três anos em que nos re­la­ci­o­namos com uma nova do­ença, que matou pelo menos 6,85 mi­lhões de pes­soas no pla­neta (mas a OMS con­si­dera pos­sível que te­nham sido até 15 mi­lhões). São con­sultas, exames e ci­rur­gias que de­ve­riam ter se re­a­li­zado no pe­ríodo pan­dê­mico, la­cuna que se ma­ni­fes­tará em mais ado­e­ci­mentos e mortes no fu­turo pró­ximo. Como mos­trará nossa ma­téria, a quan­ti­dade de todos esses pro­ce­di­mentos de saúde re­pre­sados beira o in­cal­cu­lável.

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Não à toa, o novo mi­nis­tério da Saúde, co­man­dado pela ex-pre­si­dente da Fi­o­cruz Nísia Trin­dade Lima, tem na re­dução da fila de pro­ce­di­mentos ci­rúr­gicos do SUS um de seus ob­je­tivos cen­trais. Além de in­cluir a va­cina contra covid no ca­len­dário per­ma­nente de imu­ni­zação, a mi­nistra anun­ciou um pa­cote de R$ 600 mi­lhões para o início deste amplo es­forço de mi­ti­gação dos im­pactos, vi­sí­veis e in­vi­sí­veis, da pan­demia. Se­gundo o pre­si­dente do Con­selho Na­ci­onal dos Se­cre­tá­rios Mu­ni­ci­pais de Saúde (Co­na­sems), Wi­lames Freire, são ne­ces­sá­rios pelo menos R$ 3,5 bi­lhões ao longo destes quatro anos de go­verno, não só para zerar a fila como para ga­rantir a ma­nu­tenção de mão de obra e ca­pa­citar o sis­tema de saúde a es­tancar a “pan­demia da pan­demia”.

Mas não foram “apenas” 698 mil mortes. Um es­tudo do Con­selho Na­ci­onal das Se­cre­ta­rias de Saúde (Co­nass), atu­a­li­zado pela úl­tima vez em 6 de fe­ve­reiro, traz um dado im­pres­si­o­nante. Em com­pa­ração com o pe­ríodo 2015-2019, o quinquênio an­te­rior à pan­demia, 1.142.300 bra­si­leiros per­deram suas vidas no pe­ríodo pan­dê­mico para além da curva de­mo­grá­fica pre­vi­sível (ver box). Essa é a quan­ti­dade real de pes­soas que, di­reta e in­di­re­ta­mente, a covid e seu mau ge­ren­ci­a­mento no Brasil ma­taram.

Esta re­por­tagem es­pe­cial do Outra Saúde ofe­rece um re­trato am­pliado da tra­gédia do en­contro da maior crise sa­ni­tária do país com um go­verno de ne­ga­ci­o­nistas e fa­ná­ticos ide­o­ló­gicos que ma­ni­fes­taram inú­meras vezes seu des­prezo pela ci­ência. De outro lado, ilustra o ta­manho do de­safio que o Brasil e seus ges­tores de saúde têm di­ante de si.

De­pois da tem­pes­tade, a pró­xima tem­pes­tade

“Pan­demia da pan­demia não é um con­ceito novo para nós. Todo de­sastre gera con­sequên­cias no sis­tema de saúde. Se ti­vés­semos um grande ter­re­moto parte da po­pu­lação mor­reria de in­farto, por exemplo. Um de­sastre sempre traz im­pactos in­di­retos. O im­por­tante é quan­ti­ficar o im­pacto e di­re­ci­onar a po­lí­tica pú­blica. Porque o efeito é es­pe­rado e já se deve ter a po­lí­tica pra mi­tigá-lo. Quantas ci­rur­gias sim­ples foram adi­adas? Ca­ta­ratas, co­lo­nos­co­pias… Adiam-se tais pro­ce­di­mentos, mas quando se re­toma uma nor­ma­li­dade não há nada pra mi­tigar essa ne­ces­si­dade”, ex­plicou Fá­tima Ma­rinho, mé­dica epi­de­mi­o­lo­gista e uma das au­toras do es­tudo men­ci­o­nado no início da re­por­tagem, de­no­mi­nado “Au­mento das mortes no Brasil, Re­giões, Es­tados e Ca­pi­tais em tempo de COVID-19: ex­cesso de óbitos por causas na­tu­rais que não de­veria ter acon­te­cido”, pu­bli­cado pe­lo­Co­nass (Con­selho Na­ci­onal de Se­cre­tá­rios de Saúde), en­ti­dade que con­grega todas as se­cre­ta­rias es­ta­duais de saúde e visa co­or­denar o diá­logo do setor com o go­verno fe­deral.

O es­tudo contém grá­ficos in­te­ra­tivos que di­videm as mortes por es­tado, re­gião e se­mana epi­de­mi­o­ló­gica. A fonte de pes­quisa é o Ser­viço de In­for­mação de Mor­ta­li­dade (SIM), do Mi­nis­tério da Saúde.

“Du­rante a pan­demia apa­re­ceram muitos termos. Fa­laram em coisas como ‘pa­ci­ente in­vi­sível’, por exemplo. O im­pacto será mun­dial e ge­ne­ra­li­zado, como al­guns países já sentem. Já se per­cebe um im­pacto forte em re­lação ao câncer, porque di­ag­nós­ticos e ras­tre­a­mentos quase pa­raram na pan­demia. A pessoa sentia de­ter­mi­nada dor, mas não ia ao hos­pital com medo da in­fecção. Pos­tergou uma co­lo­nos­copia por dois anos, o câncer de cólon cresceu mais do que devia, quando po­deria ter sido re­ti­rado em três meses, ela re­cebe um prog­nós­tico bem pior, um tra­ta­mento mais agres­sivo e vem a óbito. Essa vai ser uma re­a­li­dade dos pró­ximos anos”, ex­plicou Ales­sandro Bi­goni, pes­qui­sador da Fa­cul­dade de Saúde Pú­blica da USP e co­autor do es­tudo Brazil’s he­alth system func­ti­o­na­lity amidst of the COVID-19 pan­demic: an analysis of re­si­li­ence, pu­bli­cado na re­vista ci­en­tí­fica Lancet, ainda sem vei­cu­lação em por­tu­guês.

Para Victor Dou­rado, mé­dico com es­pe­ci­a­li­zação em anes­te­si­o­logia e pre­si­dente do Sin­di­cato dos Mé­dicos de São Paulo, a si­tu­ação se soma a um con­texto de re­tro­cesso na ca­pa­ci­dade do sis­tema de saúde em atender a de­manda an­te­rior à pan­demia.

“Já tí­nhamos um co­lapso imi­nente e es­tran­gu­la­mento do sis­tema de saúde por conta do sub­fi­nan­ci­a­mento. E vol­tamos a ver cortes de sub­sí­dios. O Brasil faz mi­lagre com a quan­ti­dade de re­cursos para a saúde. Pro­por­ci­o­nal­mente, em re­lação ao ta­manho da eco­nomia, de­ve­ríamos ter muito mais. A conta é sim­ples: se você corta di­nheiro da saúde, morre mais gente. Não são tra­ta­mentos caros que deixam de ser feitos, mas acom­pa­nha­mentos, ras­tre­a­mentos e vá­rios pro­ce­di­mentos que deixam de ser feitos. O efeito é di­reto”.

“Mortes ex­ces­sivas”: o re­trato mais pre­ciso da pan­demia

Atu­a­li­zado em tempo real (a úl­tima vez em 6 de fe­ve­reiro de 2023), o es­tudo do Co­nass, re­a­li­zado em par­ceria com a ONG de pes­quisa e con­sul­toria em saúde pú­blica Vital Stra­te­gies, joga luz sobre a fa­ceta mais dura dessa “pan­demia da pan­demia”: a quan­ti­dade de mortes que, de acordo com a curva de­mo­grá­fica dos anos re­centes, não de­veria ter ocor­rido. Para além das mortes cau­sadas pelo vírus, que con­formam a grande mai­oria dos óbitos ex­ces­sivos, há aqueles que se re­ferem a casos para os quais não houve acom­pa­nha­mento, seja pelo iso­la­mento so­cial que pa­ra­lisou ou adiou tra­ta­mentos, seja pela falta de con­di­ções do sis­tema pú­blico em ab­sorver toda a de­manda en­quanto o vírus lo­tava uni­dades bá­sicas, am­bu­la­tó­rios e hos­pi­tais, seja pela pura e sim­ples po­breza de in­di­ví­duos que mor­reram à margem de qual­quer am­paro.

De acordo com a pes­quisa, o Brasil somou 1.142.299 mortes ex­ces­sivas desde o início da pan­demia. São 698 mil óbitos ofi­ci­al­mente atri­buídos ao vírus e con­si­dera-se fac­tível uma sub­no­ti­fi­cação de 20%, dada a ex­cep­ci­onal quan­ti­dade de mortes atri­buídas à Sín­drome Res­pi­ra­tória Aguda Grave, de acordo com dados do Sis­tema de In­for­ma­ções de Mor­ta­li­dade do Mi­nis­tério da Saúde. Somam-se a esses nú­meros mais 304,7 mil mortes por “causas na­tu­rais”, que não de­ve­riam ter ocor­rido neste mesmo es­paço de tempo.


Taxa de mortes di­vi­dida por ano e se­mana epi­de­mi­o­ló­gica da pan­demia em com­pa­ração com os cinco anos an­te­ri­ores. Ela­bo­ração: Co­nass
Foram 310.431 mil mortes em 2020, com 25% de ex­cesso de mor­ta­li­dade es­pe­rada em re­lação à curva de­mo­grá­fica; em 2021, o mais mor­tí­fero da pan­demia, ocor­reram 563.896 óbitos, com 47% de ex­cesso de mor­ta­li­dade pro­por­ci­onal; por fim, 2022 re­gis­trou 267.973 mortes, com ex­cesso de 24%.

Para além dos nú­meros ofi­ci­al­mente re­co­nhe­cidos de mortes por covid, trata-se de uma mor­ta­li­dade cau­sada pre­do­mi­nan­te­mente por fa­tores as­so­ci­ados ao im­pacto de uma grande epi­demia, como ex­plica a nota téc­nica do es­tudo, res­pon­sá­veis pelo adi­a­mento e in­ter­rupção de acom­pa­nha­mentos e tra­ta­mentos que cei­faram uma quan­ti­dade inau­dita de vidas. En­quanto Bol­so­naro e o ge­neral Paz­zu­ello sa­bo­tavam as po­lí­ticas de pre­venção, con­forme de­mons­trado pelo es­tudo A linha do tempo da es­tra­tégia fe­deral de dis­se­mi­nação da covid-19 (2021), da Fa­cul­dade de Saúde Pú­blica da USP, os hos­pi­tais se en­tu­piam de pa­ci­entes de covid. Dessa forma, va­ri­ados tra­ta­mentos e ci­rur­gias ur­gentes dei­xavam de ser feitas por conta do iso­la­mento so­cial ao qual pes­soas ne­ces­si­tadas de acom­pa­nha­mento mé­dico foram for­çadas e, so­bre­tudo, à falta de qual­quer co­or­de­nação fe­deral em po­lí­ticas de saúde.

No âm­bito dos pro­fis­si­o­nais em saúde, o CFM, em um me­mo­rial vir­tual em sua pá­gina, con­ta­bi­liza 893 mé­dicos mortos pelo co­ro­na­vírus. No en­tanto, o me­mo­rial está atu­a­li­zado so­mente até o fim de 2021 Já o painel do Con­selho Fe­deral de En­fer­magem lista 872 fa­le­ci­mentos em meio a 64 mil casos, também até 2021. Se­gundo le­van­ta­mento do Pu­blic Ser­vices In­ter­na­ti­onal, fa­le­ceram de covid no Brasil 4.500 pro­fis­si­o­nais dos se­tores pú­blico e pri­vado de saúde até ou­tubro pas­sado.

Vale lem­brar que no início de 2022, quando a va­ri­ante ômi­cron es­tourou, os mé­dicos pau­listas ame­a­çaram uma greve, im­pe­dida pelo Tri­bunal de Jus­tiça. Ale­gava-se, à época, in­su­fi­ci­ência no nú­mero de pro­fis­si­o­nais e ex­cesso de tra­balho, num mo­mento em que cerca de 5000 pro­fis­si­o­nais de saúde foram afas­tados por terem con­traído o vírus.

Líbia Bel­lusci, en­fer­meira e membro do Fórum Na­ci­onal de En­fer­magem, ex­plicou al­gumas das ra­zões que le­varam as mortes ex­ces­sivas também aos pro­fis­si­o­nais de saúde, em es­pe­cial da cha­mada “linha de frente” do com­bate à pan­demia. “Ti­vemos muitos pro­blemas, que co­me­çaram com a ne­gação da do­ença, não só pelo go­verno fe­deral, mas pela ad­mi­nis­tração de di­versas ins­ti­tui­ções de saúde, que tar­daram a ga­rantir Equi­pa­mentos de Pro­teção In­di­vi­dual (EPI) aos tra­ba­lha­dores, se­parar os pa­ci­entes e também treinar pro­fis­si­o­nais para o aten­di­mento. Não houve tes­tagem em massa, o que fez com que po­pu­lação e tra­ba­lha­dores, mesmo con­ta­mi­nados, con­ti­nu­assem cir­cu­lando. Por fim, o re­tardo na va­ci­nação. Tudo isso fez com que ti­vés­semos mais con­ta­mi­nados, mais leitos de UTI ocu­pados e muito mais mortes do que de­ve­ríamos ter. Sem contar que a so­bre­carga do sis­tema de saúde com os casos de covid di­mi­nuiu os aten­di­mentos das ou­tras do­enças e causou mais mortes in­di­retas”.

Além das de­si­gual­dades re­gi­o­nais, outro as­pecto que não po­deria deixar de ser cons­ta­tado ao se des­trin­char as es­ta­tís­ticas é o ra­cial.

De acordo com o es­tudo Os im­pactos de­si­guais da COVID-19 na po­pu­lação negra no Brasil, pu­bli­cado pelo grupo Raça e Saúde, também com a par­ti­ci­pação de Fá­tima Ma­rinho e da Vital Stra­te­gies, “em 2020, o ex­cesso de mor­ta­li­dade foi de 28% entre pretos e pardos em com­pa­ração com 18% entre pes­soas de cor branca. Esta di­fe­rença, em nú­meros ab­so­lutos, re­pre­senta 36 mil óbitos a mais entre pes­soas de cor preta e parda em re­lação às brancas. O ex­cesso de mor­ta­li­dade em 2020 Brasil foi de 270 mil mortes (22%)*. Ou seja, esse foi o nú­mero de pes­soas que mor­reram acima do es­pe­rado para o ano. No en­tanto, a pan­demia da COVID-19 afetou de forma des­pro­por­ci­onal a po­pu­lação negra, re­sul­tando em um ex­cesso de mor­ta­li­dade de 28% (153 mil mortes) de pes­soas pretas e pardas. Os ho­mens pretos e pardos mor­reram duas vezes mais do que as mu­lheres brancas”.

E o es­tudo, fo­ca­li­zado no pri­meiro ano da pan­demia, re­força que a inépcia do Es­tado co­brará mais vidas ne­gras também neste as­pecto. “As de­si­gual­dades ob­ser­vadas no es­tudo re­a­firmam que a po­pu­lação negra é mais vul­ne­rável e teve um maior ex­cesso de mor­ta­li­dade de­vido à COVID-19, nos le­vando a afirmar que a COVID-19 não é uma epi­demia, e sim uma sin­demia. Tanto pes­qui­sa­dores que atuam com sin­de­mias (campo de pes­quisa com raízes na an­tro­po­logia mé­dica) quanto no campo da saúde e dos di­reitos hu­manos re­co­nhecem que os de­ter­mi­nantes so­ciais, po­lí­ticos e es­tru­tu­rais con­tri­buem mais para as de­si­gual­dades em saúde do que fa­tores bi­o­ló­gicos ou es­co­lhas pes­soais. Uma sin­demia não é apenas uma co­mor­bi­dade. São ca­rac­te­ri­zadas por in­te­ra­ções bi­o­ló­gicas e so­ciais, in­te­ra­ções que au­mentam a sus­ce­ti­bi­li­dade de uma pessoa a do­enças e à perda da saúde ao longo da vida. Não é ale­a­tório que a po­pu­lação negra tenha mais co­mor­bi­dades para COVID-19 e menor acesso aos ser­viços de saúde”.

Em caso de não haver um for­ta­le­ci­mento do SUS, con­clui Fá­tima Ma­rinho, ainda pas­sa­remos mais al­guns anos a con­ta­bi­lizar “mortes ex­ces­sivas”. “Não é um de­safio fu­turo. Não é sur­presa. É algo ine­rente a um sis­tema de saúde. Por isso se deve ter in­te­li­gência dentro de sis­temas de saúde, que devem pro­gramar mi­ti­ga­ções a im­pactos cau­sados por uma pan­demia. E con­ti­nu­a­remos vendo im­pactos, mais gente vai morrer por falta de co­or­de­nação e an­te­ci­pação aos pro­blemas. O sis­tema de saúde tem de ser am­pliado. Porque além do que já havia, temos uma nova carga, que são os pa­ci­entes do­entes de covid longa. E não vemos plano ne­nhum de en­fren­ta­mento. O de­safio já está co­lo­cado e não temos res­postas. Pre­ci­samos de pes­quisas e novos me­di­ca­mentos para tratar de uma coisa nova. A pan­demia não acabou, po­demos ter uma nova va­ri­ante. Não sa­bemos o quanto os sin­tomas podem se pro­longar em quem já teve. Se temos o SARS-COV 2 po­demos ter o SARS-COV 3, por­tanto, é pre­ciso manter a vi­gi­lância de casos e de ge­noma. Vejo uma tra­gédia enorme, que vai con­ti­nuar se não for feito um plano na­ci­onal de mi­ti­gação”.

* O es­tudo se re­fere ao nú­mero de mortes ex­ces­sivas con­ta­bi­li­zado à época de sua con­clusão. Com a atu­a­li­zação do painel pelo Co­nass a cifra atingiu 310.431.

Nú­meros e mais nú­meros

Além da sub­no­ti­fi­cação de in­fec­ções e óbitos, con­sen­sual entre todos os es­pe­ci­a­listas da área mé­dica dentro e fora do Brasil, não há um dado na­ci­onal sobre uma quan­ti­dade total de pro­ce­di­mentos que dei­xaram de ser feitos no SUS desde o início da pan­demia. O Da­taSUS for­nece uma boa base de dados a este res­peito, mas não de forma uni­fi­cada, pois di­vide exames, in­ter­na­ções e ci­rur­gias por áreas da me­di­cina, por sua vez sub­di­vi­didas por cada es­pe­ci­fi­ci­dade clí­nica, além de a frag­men­tação ser feita por es­tados e mu­ni­cí­pios, sendo que nem todos for­necem in­for­ma­ções em tempo e quan­ti­dade con­fiá­veis.

Mas já apa­recem al­guns es­tudos que ofe­recem in­dí­cios do ta­manho do ice­berg abaixo da su­per­fície. De acordo com dados do Sis­tema de In­for­ma­ções Am­bu­la­to­riais do SUS, houve uma re­dução de 20% dos exames para di­ag­nós­ticos no pri­meiro ano pan­dê­mico: foram 982 mi­lhões em 2019, ante 785 mi­lhões em 2020.

Já uma pes­quisa do Con­selho Fe­deral de Me­di­cina (CFM) afirma ter ha­vido, apenas de março a de­zembro de 2020, uma re­dução de 27 mi­lhões de con­sultas, exames e ci­rur­gias não ur­gentes em re­lação ao mesmo pe­ríodo de 2019. Também ob­servou 60% de queda nos aten­di­mentos diá­rios de emer­gência e UTI em função da re­serva de leitos hos­pi­ta­lares à Covid-19. Somam-se, ainda de acordo com o CFM, 900 mil pes­soas na fila de es­pera de ci­rur­gias, mas o órgão as­sume que o nú­mero deve ser maior de­vido à “falta de dados de al­guns es­tados, à fila do ser­viço fe­deral e à sim­ples falta de acesso ao sis­tema de parte da po­pu­lação”.

Dentre os 27 mi­lhões de pro­ce­di­mentos ele­tivos a menos, o CFM listou as dez áreas mé­dicas mais afe­tadas, sendo que na ra­di­o­te­rapia a re­dução chegou a quase 100% de va­ri­ação ne­ga­tiva.


Ela­bo­ração: Con­selho Fe­deral de Me­di­cina

Além das es­pe­ci­a­li­dades mais afe­tadas, o CFM também listou os 10 tipos de pro­ce­di­mentos com mai­ores quedas ab­so­lutas, dentro do mesmo pe­ríodo acima men­ci­o­nado.


Por sua vez, o su­pra­ci­tado es­tudo da Lancet elenca uma série de pro­ce­di­mentos em di­versas áreas que so­freram re­dução, desde exame de ima­gens e con­sultas pre­sen­ciais a ci­rur­gias de baixa, média e alta com­ple­xi­dade e até nas­ci­mentos.

Se­gundo este es­tudo, em 2020 os exames de imagem caíram 42,6%; pro­ce­di­mentos para di­ag­nós­tico, 28,9%; con­sultas pre­sen­ciais, 42,5%; ci­rur­gias de baixa e média com­ple­xi­dade, 59,7%; ci­rur­gias de alta com­ple­xi­dade, 27,9%; trans­plantes, 44,7%; tra­ta­mentos e pro­ce­di­mentos clí­nicos por fe­ri­mentos e le­sões, 19,1%; pro­ce­di­mentos ina­diá­veis, 8,5%; nas­ci­mentos, 12,6%; por fim, de­mais pro­ce­di­mentos caíram 15,5%. Todos com re­dução gra­dual a cada tri­mestre. No total, o país viu a pro­dução em saúde cair em 25%.

Di­vi­dido em es­tados e re­giões, o ar­tigo também abordou a dis­tri­buição de re­cursos a es­tados e mu­ni­cí­pios, o que per­mitiu fla­grar como a pan­demia re­pro­duziu no acesso à saúde as de­si­gual­dades re­gi­o­nais que marcam a for­mação so­ci­o­e­conô­mica bra­si­leira. Os nú­meros acima ci­tados con­formam uma média na­ci­onal, mas ao re­parti-los por re­giões nota-se que a di­mi­nuição de pro­ce­di­mentos al­cançou nú­meros mais drás­ticos nas re­giões Norte e Nor­deste.

“A grande e des­ca­rada marca do erro é o fato de o go­verno fe­deral ter pul­ve­ri­zado de forma igual os re­cursos pelo país. A dis­tri­buição per ca­pita foi muito pa­re­cida entre es­tados e mu­ni­cí­pios. Mas al­guns es­tados e mu­ni­cí­pios pre­ci­savam de va­lores mai­ores. E foram os es­tados que mais as­su­miram gastos e ti­veram re­dução de pro­ce­di­mentos ge­rais em saúde. Se a co­or­de­nação fe­deral se pre­o­cu­passe com as dis­pa­ri­dades que marcam o país o im­pacto teria sido menor, menos pro­ce­di­mentos te­riam sido adi­ados e os es­tados gas­ta­riam menos, pois ti­raram mais do que ti­nham do bolso, e até do que de­ve­riam, se com­pa­rados a vi­zi­nhos mais ricos”, ex­plicou Ales­sandro Bi­goni.

Dentre todo o recuo de acom­pa­nha­mento mé­dico na saúde dos pelo menos 150 mi­lhões de usuá­rios do SUS, o câncer pa­rece ser o as­pecto mais pre­o­cu­pante. A do­ença matou 232 mil pes­soas em 2019. Em 2020, foram 226 mil fa­le­ci­mentos, se­gundo o Ins­ti­tuto Na­ci­onal do Câncer. A queda nu­mé­rica é ilu­sória, pois como já su­gere o es­tudo Covid-19 no Brasil em 2020: im­pacto nas mortes por câncer e do­enças car­di­o­vas­cu­lares a pró­pria covid pode ter im­pac­tado nas mortes de pes­soas que já con­vi­viam com algum tipo de câncer, além de a di­mi­nuição do ras­tre­a­mento já ser tida como re­a­li­dade.

“O efeito da pan­demia no cui­dado dos in­di­ví­duos com câncer foi abor­dado em di­versos es­tudos in­ter­na­ci­o­nais. Uma re­visão sis­te­má­tica, pu­bli­cada em 2021, iden­ti­ficou 62 es­tudos re­a­li­zados em 15 países, em sua mai­oria da Eu­ropa e Amé­rica do Norte, re­la­ci­o­nados a atrasos e in­ter­rup­ções no tra­ta­mento de pes­soas com câncer como con­sequência da pan­demia: atrasos no tra­ta­mento foram re­la­tados por 77,5% dos in­di­ví­duos que res­pon­deram aos inqué­ritos ob­jeto da pes­quisa; uma taxa de in­ter­rupção do tra­ta­mento de 26,3% foi iden­ti­fi­cada nos es­tudos lon­gi­tu­di­nais; e uma re­dução de 30% nas in­ter­na­ções re­la­ci­o­nadas ao câncer. Não se en­con­traram es­tudos que ava­li­assem di­re­ta­mente o efeito da pan­demia no ras­tre­a­mento e di­ag­nós­tico do câncer, em­bora haja es­ti­ma­tivas re­a­li­zadas por pro­fis­si­o­nais en­vol­vidos na gestão de al­guns pro­gramas de ras­tre­a­mento de câncer em países de média e baixa renda. Em es­tudo re­a­li­zado no Reino Unido, es­timou-se, por mo­de­lagem de base po­pu­la­ci­onal, entre 3.291 e 3.621 mortes adi­ci­o­nais por câncer de mama, de esô­fago, de pulmão e co­lor­retal no pe­ríodo de cinco anos, como re­sul­tado dos atrasos no di­ag­nós­tico desses tipos de câncer atri­buídos à pan­demia”, des­creve o ar­tigo Efeitos de curto prazo da pan­demia de COVID-19 na re­a­li­zação de pro­ce­di­mentos de ras­tre­a­mento, in­ves­ti­gação di­ag­nós­tica e tra­ta­mento do câncer no Brasil: es­tudo des­cri­tivo, 2019-2020, pu­bli­cado pelo Ins­ti­tuto Na­ci­onal de Câncer (INCA) José Alencar Gomes da Silva, Di­visão de De­tecção Pre­coce e Apoio à Or­ga­ni­zação de Rede, e es­crito pelas pes­qui­sa­doras Ca­ro­line Ma­da­lena Ri­beiro, Flávia de Mi­randa Correa e Arn Mi­gowski.

O mesmo es­tudo apurou que no Brasil, apenas no pe­ríodo des­crito, “houve re­dução de 3.767.686 (44,6%) exames ci­to­pa­to­ló­gicos do colo do útero e de 1.624.056 (42,6%) ma­mo­gra­fias em re­lação aos dados cor­res­pon­dentes de 2019”. Em li­nhas ge­rais, apenas os tra­ta­mentos com qui­mi­o­te­rapia se man­ti­veram es­tá­veis, ainda que al­guns pa­ci­entes em si­tu­ação não ur­gente ti­vessem ses­sões pos­ter­gadas por conta da falta de leitos ou da po­lí­tica de pre­venção ao con­tágio.

“As taxas mé­dias de in­ter­nação hos­pi­talar para tra­ta­mento clí­nico de câncer di­mi­nuíram de 13,9 para 10,2 por 100 mil ha­bi­tantes, entre 2019 e 2020, re­pre­sen­tando uma di­fe­rença de taxas de 3,7/100 mil ha­bi­tantes. As ad­mis­sões para tra­ta­mento on­co­ló­gico ci­rúr­gico mos­traram um de­clínio da ordem de 5,8 por 100 mil ha­bi­tantes, com di­fe­renças re­gi­o­nais a va­riar entre 2,2 e 10,8 por 100 mil ha­bi­tantes, e queda mais sig­ni­fi­ca­tiva nas re­giões Sul e Su­deste”, com­ple­menta o es­tudo do INCA.

Além disso, con­corre para a in­ten­si­fi­cação da “pan­demia da pan­demia” o con­texto de crise econô­mica as­so­ciada à po­lí­tica de li­mi­tação de in­ves­ti­mentos em pastas so­ciais, ins­tau­rada pela Emenda Cons­ti­tu­ci­onal 95, a cha­mada PEC do Teto de Gastos, apro­vada em 2016, logo após o im­pe­a­ch­ment de Dilma Rous­seff.

“Temos menos pro­fis­si­o­nais con­tra­tados hoje do que em 2013, ou seja, di­mi­nuiu a ca­pa­ci­dade ins­ta­lada de aten­di­mento na atenção pri­mária, que nem é a face mais dra­má­tica do sis­tema de saúde. Também sa­bemos que em São Paulo todas as UBS ge­ridas por Or­ga­ni­za­ções So­ciais têm uma média de dois mé­dicos a menos por uni­dade do que seria ne­ces­sário, o que dá um dé­ficit em torno de 1500 mé­dicos. Con­si­de­rando uma média de 4 aten­di­mentos por hora, em jor­nadas se­ma­nais de 40 horas, che­gamos a algo pró­ximo de 960 mil con­sultas a menos dis­po­ní­veis por mês. Por­tanto, o que a pan­demia res­saltou em ci­rur­gias ele­tivas, pro­ce­di­mentos am­bu­la­to­riais e de emer­gência, já existia na atenção pri­mária”, ilus­trou Victor Dou­rado.

Fá­tima Ma­rinho não poupa crí­ticas ao go­verno Bol­so­naro, mesmo di­ante da ex­cep­ci­o­na­li­dade do con­texto. “O de­safio já es­tava co­lo­cado antes da pan­demia. Isso tem de ser pla­ne­jado, já se deve pla­nejar mi­ti­gação de im­pactos di­retos e in­di­retos de pan­de­mias ou de­sas­tres. Não dá pra saber quando um fenô­meno deste vai ocorrer, mas deve-se contar que um dia acon­tece. Deve-se an­te­cipar aos fatos. Deve-se ter re­fe­rên­cias. Por exemplo: não se fez nada em re­lação a ges­tantes. Ti­vemos um ex­cesso de mortes de ges­tantes. As mu­lheres que­riam ter filho e não pu­deram. Por quê? Ti­nham covid e iam para uma en­fer­maria de covid. Não iam para uma re­fe­rência obs­té­trica de covid. Ti­vemos partos in­du­zidos e ce­sa­ri­anas em UTI de covid. E as mu­lheres mor­reram. São 4 mi­lhões de partos por ano no Brasil. Era óbvio que isso ia acon­tecer”.


Ela­bo­ração: CFM

Au­mento da de­manda por ser­viços de saúde

Com o avanço da va­ci­nação na po­pu­lação e a re­to­mada de boa parte das ve­lhas ro­tinas, na­tu­ral­mente a busca pelos pro­ce­di­mentos adi­ados se acen­tuou. O nú­mero de ci­rur­gias ele­tivas, isto é, aquelas que não são tidas como ur­gentes, voltou a subir, mesmo que ainda não tenha re­cu­pe­rado os pa­ta­mares de 2019. De acordo com o Mi­nis­tério da Saúde, o pri­meiro se­mestre de 2021 re­gis­trou 50 mi­lhões de pro­ce­di­mentos mé­dicos am­bu­la­to­riais ele­tivos, au­mento de 20% em re­lação ao mesmo pe­ríodo de 2020 (41,6 mi­lhões). O nú­mero ainda é 14% in­fe­rior ao pri­meiro se­mestre de 2019.

“Dentre as so­lu­ções pro­postas para en­frentar esse de­safio estão a re­a­li­zação de cam­pa­nhas vol­tadas aos pa­ci­entes, es­pe­ci­al­mente aqueles com do­enças crô­nicas, para que não aban­donem seus tra­ta­mentos. Por meio das redes so­ciais e im­prensa, di­versas or­ga­ni­za­ções já têm de­fen­dido que muitas do­enças não podem es­perar e, quanto antes forem di­ag­nos­ti­cadas, me­lhor será o re­sul­tado de seu tra­ta­mento”, propõe o CFM.

Ales­sandro Bi­goni, que des­taca o su­cesso do SUS em cam­pa­nhas an­te­ri­ores de con­trole e ras­tre­a­mento de epi­de­mias, como zika e H1N1, ex­plica que in­vestir em as­pectos pre­ven­tivos – e mais ba­ratos – da saúde será fun­da­mental. “É ne­ces­sário in­vestir no­va­mente em di­ag­nós­tico em atenção pri­mária de saúde, cons­ci­en­ti­zação da po­pu­lação para que man­tenha exames de ro­tina, pro­cure mé­dicos. Não se sabe ainda a ex­tensão deste pro­blema para o fu­turo”, alertou.

Tanto nos re­fe­ridos es­tudos como nas en­tre­vistas re­a­li­zadas pelo Outra Saúde, o di­ag­nós­tico a res­peito da ne­ces­si­dade de am­pli­ação do sis­tema pú­blico de saúde é unâ­nime. E isso in­clui novas es­tra­té­gias e fer­ra­mentas ainda pouco uti­li­zadas, a exemplo da te­le­me­di­cina, entre ou­tras pos­si­bi­li­dades.

De acordo com a OMS, o país tem gasto per ca­pita no setor de 610 dó­lares (R$ 3.380), en­quanto as na­ções ricas su­peram a casa dos US$ 2 mil. Como mos­trou ma­téria do Outra Saúde, o Con­selho Na­ci­onal da Saúde (CNS) apre­sentou pro­posta for­mu­lada na As­so­ci­ação Bra­si­leira de Eco­nomia da Saúde (AbrES) que prevê o au­mento pro­gres­sivo da per­cen­tagem do PIB para in­ves­ti­mentos pú­blicos em saúde, o que ele­varia o in­ves­ti­mento per ca­pita a 1.375 dó­lares. Fran­cisco Funcia, eco­no­mista membro do CNS, “su­gere a ta­xação de grandes for­tunas, a am­pli­ação dos re­cursos do pré-sal para a Saúde e, em mo­mentos de crise, a emissão de dí­vida por parte do Es­tado, vin­cu­lada a gastos com os cha­mados ‘efeitos mul­ti­pli­ca­dores’”.

“É fun­da­mental o de­senho de es­tra­té­gias para ame­nizar danos dos pos­sí­veis atrasos re­sul­tantes da pre­sença da COVID-19. Entre essas es­tra­té­gias, cabe citar as se­guintes ini­ci­a­tivas, in­cluídas no le­van­ta­mento re­a­li­zado pela Agência In­ter­na­ci­onal de Pes­quisa em Câncer: 1) o de­sen­vol­vi­mento de apli­ca­tivos ou li­nhas de te­le­fone es­pe­cí­ficas, para agen­da­mento de con­sultas on­co­ló­gicas e es­cla­re­ci­mento de dú­vidas; 2) os laudos de exames de ras­tre­a­mento dis­po­ni­bi­li­zados on­line; 3) a te­le­con­sulta para in­di­ví­duos com testes po­si­tivos; 4) o trans­porte gra­tuito para in­di­ví­duos com teste de ras­tre­a­mento po­si­tivo; 5) o en­ga­ja­mento de jo­vens vo­lun­tá­rios que iden­ti­fi­quem e apoiem in­di­ví­duos ne­ces­si­tados, com di­fi­cul­dades de acesso ao aten­di­mento on­co­ló­gico”, elenca o es­tudo do INCA.

Para Victor Dou­rado, são mo­mentos como esse, e não de bo­nança, que exigem a ex­pansão de sis­temas de saúde como me­ca­nismos de con­trole de crises com re­per­cus­sões que vão muito além da saúde. A pró­pria cri­ação do SUS em meio à vi­o­lenta crise bra­si­leira dos anos 80, além do sis­tema pú­blico de saúde bri­tâ­nico criado no pós-se­gunda guerra e o Oba­ma­care na es­teira do crash de 2008-09, são as provas de sua tese.

“Em 2013, 2014, ti­vemos um au­mento subs­tan­cial dos usuá­rios de planos pri­vados. De­pois co­meçou uma di­mi­nuição, mas menos in­tensa do que vemos agora, sob im­pactos da crise econô­mica. Isso porque boa parte dos planos é feita por em­presas, em acordos de co­ber­tura co­le­tiva. Ou seja, a pessoa pre­cisa estar em­pre­gada para ter plano de saúde. Com o avanço do de­sem­prego isso pi­orou. Por­tanto, a si­tu­ação econô­mica de de­pressão vai, sim, pres­si­onar mais o sis­tema pú­blico. Es­tamos di­ante da pos­si­bi­li­dade de sair da pan­demia e re­gredir a uma si­tu­ação pior do que se via antes da pan­demia, que já era pre­o­cu­pante, por conta de todo o con­texto econô­mico que tem per­du­rado”.

Líbia Bel­lusci, do Fórum Na­ci­onal de En­fer­magem, con­corda: “o acú­mulo nas filas de aten­di­mento, que já exis­tiam e só au­men­taram, e o sur­gi­mento de pa­ci­entes se­que­lados por covid com cer­teza le­varão anos para serem nor­ma­li­zados, de­man­darão dos go­vernos, em todos os ní­veis, uma atenção muito maior, com mais in­ves­ti­mento e pla­ne­ja­mento. Sem contar que, por conta da cam­panha contra a va­ci­nação, o Brasil nunca va­cinou tão pouco as cri­anças, o que deve acar­retar o re­a­pa­re­ci­mento de do­enças que já não exis­tiam mais”.

Em um dos con­textos po­lí­ticos mais acir­rados da his­tória, um tema desta en­ver­ga­dura pode ser ofus­cado, mas em algum mo­mento o Brasil terá de se de­parar com a lista de de­sa­fios que a pan­demia apre­sentou: fi­nan­ci­a­mento e ex­pansão da saúde pú­blica em tempos de he­ge­monia ide­o­ló­gica ne­o­li­beral, mo­ni­to­ra­mento de um vírus que não foi er­ra­di­cado, re­cu­pe­ração e até su­pe­ração dos ní­veis an­te­ri­ores de aten­di­mentos à po­pu­lação, re­cu­pe­ração de altas taxas de va­ci­nação, es­tan­ca­mento das cha­madas mortes ex­ces­sivas, re­dução das de­si­gual­dades re­gi­o­nais, ra­ciais e econô­micas em saúde. Uma pauta ex­tensa que ine­vi­ta­vel­mente se co­lo­cará di­ante dos prin­ci­pais grupos e atores po­lí­ticos do país.

Pro­fis­si­o­nais e usuá­rios do sis­tema de saúde: duas faces do so­fri­mento

Luiza*, ges­tora de um centro de re­a­bi­li­tação na re­gião me­tro­po­li­tana de São Paulo, re­lata a exaus­tiva ro­tina à qual foram sub­me­tidos os tra­ba­lha­dores da saúde pú­blica desde o início da pan­demia.

“Pes­soas iden­ti­fi­cadas como grupo de risco dei­xaram de ir, e vá­rios aten­di­mentos que eram em grupo ti­veram de mudar, em tempo re­corde. Ainda ti­vemos de in­cor­porar o uso de tec­no­lo­gias novas nos aten­di­mentos, e não tí­nhamos apa­re­lhos su­fi­ci­entes para passar ao te­le­a­ten­di­mento, que chegou a 90% dos aten­di­mentos”, re­lembra.Em meio ao re­cru­des­ci­mento do co­ro­na­vírus, os pro­fis­si­o­nais de saúde pas­saram a se des­do­brar em acú­mulo de fun­ções, in­clu­sive a ponto de aten­derem em uni­dades di­fe­rentes das que tra­ba­lhavam antes.

Ela afirma que a so­bre­carga de tra­balho amainou o re­pre­sa­mento de acom­pa­nha­mentos mé­dicos, mas con­si­dera ne­ces­sário levar em conta que di­versos con­textos da vida co­ti­diana das pes­soas se al­te­raram.

“A pró­pria di­nâ­mica de re­lação com o ser­viço de saúde so­freu uma piora, não só por conta de adiar aten­di­mentos, mas por conta de ne­ces­si­dades bá­sicas que têm aco­me­tido as pes­soas. Es­tamos nos or­ga­ni­zando pra con­se­guir roupas, cestas bá­sicas, as pes­soas per­deram di­reitos na pan­demia, como na re­dução do cartão de trans­porte em São Paulo, pes­soas com de­fi­ci­ência que não pu­deram re­novar seus car­tões, pois ser­viços pú­blicos como a SP­Trans também se tor­naram on­line, es­colas fe­charam… Tem um re­pre­sa­mento grande de pro­ce­di­mentos ditos não ur­gentes, mas mesmo quando li­be­rados as pes­soas não con­se­guem acessá-los por conta de fa­tores as­so­ci­ados”.

E se antes já exis­tiam, agora as filas por ci­rur­gias de pe­quena, média ou alta com­ple­xi­dade, ele­tivas ou não, au­men­taram ainda mais. São cerca de 320 mil pes­soas na fila de es­pera por ci­rur­gias so­mente no es­tado de São Paulo, de acordo com in­for­mação da Se­cre­taria de Saúde. Um dos que aguardam an­si­o­sa­mente pela sua vez é Le­o­nete Amaral da Silva, ex-pro­dutor de vídeo, cujas dores no púbis após uma he­pa­tite que o deixou um mês in­ter­nado evo­luíram para ar­trose.

“A saga co­meçou em 2016. Passei pelo or­to­pe­dista, tentei ho­me­o­patia pra me­lhorar e acabei indo para a re­solver essa ar­trose do qua­dril ao es­querdo. Re­cebi au­xílio-do­ença por um ano, mas de­pois foi sus­penso. Até hoje luto por au­xílio-do­ença ou apo­sen­ta­doria, mas nada sai”.

Sua his­tória é ilus­tra­tiva de um Brasil que não sai no no­ti­ciário, mas vive na carne a re­a­li­dade das re­formas li­be­rais di­tadas de cima para baixo na so­ci­e­dade bra­si­leira, sem qual­quer anuência de re­pre­sen­tantes do mundo do tra­balho e, grosso modo, sem voto. Des­fi­nan­ci­a­mento da se­gu­ri­dade so­cial e re­bai­xa­mento de di­reitos tra­ba­lhistas se tor­naram lei e se tra­du­ziram em de­sem­prego, su­bo­cu­pação da força de tra­balho, queda na renda média e novos vín­culos entre ca­pi­ta­listas e tra­ba­lha­dores que o Es­tado ainda en­ga­tinha em re­co­nhecer.

“Tra­ba­lhava com co­mu­ni­cação vi­sual, es­tru­turas grandes, su­bindo e des­cendo es­cada. Hoje não con­sigo mais fazer isso. Tive de fe­char a firma, vender meus equi­pa­mentos, não podia fazer os ser­viços de antes. Eu nem po­deria estar tra­ba­lhando, mas sem au­xílio-do­ença nem nada virei mo­to­rista de apli­ca­tivo pra não ficar sem renda, pois o be­ne­fício do INSS é sis­te­ma­ti­ca­mente ne­gado”, diz Le­o­nete, que hoje anda de ben­gala.  

Ex­pe­ri­ente em lidar com essas múl­ti­plas di­men­sões que en­tram numa sala de con­sulta, Luiza faz uma aná­lise abran­gente de todos os con­di­ci­o­nantes das atuais ne­ces­si­dades em saúde e da di­ver­si­dade de ca­mi­nhos a tri­lhar na sua re­so­lução.

“Temos vá­rios dé­fi­cits as­sis­ten­ciais e não temos po­lí­ticas sig­ni­fi­ca­tivas de in­cre­mento do ser­viço de saúde. Existem ações do tipo mu­tirão pra mi­tigar    os efeitos da ‘pan­demia da pan­demia’, que tem efeitos muitos di­fe­rentes em lo­cais e classes so­ciais. Em São Paulo isso é bem per­cep­tível. Na pe­ri­feria não houve iso­la­mento real. O pós-pan­demia traz agra­va­mento nas con­di­ções de saúde que não vai ser re­sol­vido apenas com au­mento no aten­di­mento clí­nico e con­sultas. A piora nas con­di­ções de saúde é geral, mental e fí­sica. Não é só ga­rantir mais pro­fis­si­o­nais de saúde. Fa­lamos de gente que dei­xava fi­lhos com pa­rentes que mor­reram, que se cuidam menos por conta da falta de di­nheiro e não fazem acom­pa­nha­mentos que lá frente se re­fletem em um câncer… Não é só atender mais. É ga­rantir con­di­ções ge­rais de pro­moção da saúde da po­pu­lação”, ex­plicou a ges­tora.

“A ló­gica não é de au­mentar a qua­li­dade dos ser­viços em saúde, mas os lu­cros. Em SP, com a fila das ci­rur­gias, vimos a pro­posta de pagar em dobro os hos­pi­tais pri­vados para di­mi­nuir o dé­ficit. Mas isso não é feito de forma emer­gen­cial e está as­so­ciado à di­mi­nuição da es­tru­tura pú­blica, re­cor­ren­te­mente. Em meio a crises, vemos pro­cessos de trans­fe­rência de re­cursos para o setor pri­vado. No RJ, hos­pi­tais de cam­panha foram fi­nan­ci­ados por di­nheiro pú­blico em es­tru­turas pri­vadas. Além de cortar di­nheiro do sis­tema pú­blico, trans­fere-se o que tem para o setor pri­vado. Di­fícil não con­cluir que a crise da saúde pú­blica não seja um pro­jeto po­lí­tico. É o que, em boa parte, ex­plica os lu­cros do setor pri­vado no meio da pan­demia”, cri­tica Victor Dou­rado, do Si­mesp.

 “Agora estou ten­tando vaga na or­to­pedia do Hos­pital do Ser­vidor Mu­ni­cipal, capaz de ci­rur­gias um pouco mais com­plexas. É outra ba­talha, há muita re­cla­mação em re­lação a isso, porque toda pri­meira con­sulta tem de ser através do sis­tema pú­blico, ou seja, pre­ciso passar de novo por car­di­o­lo­gista, or­to­pe­dista, e não tem vaga. Pre­ciso de re­médio pra dormir, senão não aguento nem virar na cama… É todo um so­fri­mento fí­sico e emo­ci­onal”, conta Le­o­nete.

Por sua vez, Luiza la­menta a falta de visão a res­peito de ques­tões es­tru­tu­rantes que fa­tal­mente re­per­cu­tirão no sis­tema pú­blico de saúde.

“Há menos gente nas uni­ver­si­dades, alunos que não pu­deram con­ti­nuar em fa­cul­dades pri­vadas por falta de con­di­ções em pagar e uma con­se­quente di­mi­nuição no nú­mero de pro­fis­si­o­nais for­mados. Tento ser oti­mista com a po­lí­tica pú­blica, mas vejo que há tempos não se in­veste em equi­pa­mentos. Temo viver uma ló­gica de mu­tirão per­ma­nente, de sempre correr pra tapar um bu­raco, mas sem in­vestir es­tru­tu­ral­mente no SUS. Porque mu­tirão em or­to­pedia gera uma de­manda nova por fi­si­o­te­rapia, por pro­fis­si­o­nais ca­pazes de atender, equi­pa­mentos dis­po­ní­veis…”

Es­posa de Le­o­nete e en­fer­meira do Dante Paz­za­nese du­rante 25 anos, Ana Fir­mino co­nhece as dis­putas po­lí­ticas em torno do fi­nan­ci­a­mento do setor e é en­fá­tica: “o setor pri­vado de saúde é o que mais lu­crou na pan­demia”.

* O nome da ser­vi­dora pú­blica de saúde e seu local de tra­balho foram pre­ser­vados com fins de se evitar re­ta­li­a­ções

Ga­briel Brito é jor­na­lista, editor do Cor­reio da Ci­da­dania e re­pórter do Outra Saúde, onde esta re­por­tagem foi ori­gi­nal­mente pu­bli­cada.