Empresas devem mais de R$ 1 trilhão à Previdência. Para Dieese, “reforma é fundamentada em dados contestáveis”

05/08/2019 09:18

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Extra Classe – Envolvida em um esquema de corrupção, obstrução à Justiça, lavagem de dinheiro e operações ilegais no mercado financeiro, a holding JB&F, que tem como sócio o empresário Joesley Batista, está longe de ser o maior dos devedores da Previdência Social.

O caso da empresa e seus executivos que, em 2017 foram apanhados em um dos maiores esquemas de corrupção da história da República e negociaram acordos de delação no âmbito da Operação Lava Jato, no entanto, é exemplar entre as megacorporações que sangram o sistema previdenciário ao não pagarem suas dívidas com a União.

Informações fornecidas pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) ao Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) demonstram que o governo renuncia a mais de R$ 1 trilhão ao deixar de cobrar os grandes devedores da Previdência. Além disso, a queda na arrecadação causada pelo desemprego e a recessão, as renúncias fiscais, desonerações tributárias e a desvinculação de recursos do sistema pelo próprio governo puxam para baixo o orçamento da seguridade social.

Arte: Dieese/RS

Dados da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) indicam que as dívidas de empresas com a seguridade social atingiram, no final de 2018, R$ 1,055 trilhão

Até meados de julho, a (PGFN) informava que uma das empresas do grupo JB&F, o frigorífico JBS, maior processadora de carnes do planeta, estava classificada na categoria de devedor “em cobrança”, ou seja, como o frigorífico não tinha fluxo de caixa, os procuradores estavam buscando patrimônio para executar as dívidas. Mas a empresa sumiu da lista de devedores em questão de dias e suas pendências, de R$ 2,2 milhões agora aparecem como “dívidas não previdenciárias”.

A Procuradoria não explica o que ocorreu, o que torna o caso ainda mais estranho, até por se tratar de uma empresa cujos executivos tiveram seus processos de delação rescindidos pela Justiça por mentir e dissimular informações. Enquanto isso, o site da PGFN perdeu transparência e restringiu o acesso às informações sobre devedores por CNPJ ou razão social, o que cria barreiras para o acesso do cidadão comum a informações que derrubam o mito do déficit da Previdência.

Na mesma classificação de dívidas “não previdenciárias”, aparecem outras empresas do grupo J&F, como a Seara Alimentos, com dívidas que somam R$ 11,2 milhões; e a Alpargatas, R$ 2,8 milhões. O único CNPJ do conglomerado sob o comando dos irmãos Batista negativado por dívidas previdenciárias é o da Mafrig Global Foods, R$ 80,3 milhões sonegados.

Matadouro da JBS no Colorado, Estados Unidos. A maior processadora de carnes do planeta pertence ao grupo JB&F, que deve R$ 80 milhões à Previdência

Matadouro da JBS no Colorado, Estados Unidos. A maior processadora de carnes do planeta pertence ao grupo JB&F, que deve R$ 80 milhões à Previdência

Joesley Batista, apanhado no maior esquema de corrupção do país, fez e descumpriu acordos de delação

Joesley Batista, apanhado no maior esquema de corrupção do país, fez e descumpriu acordos de delaçãoFoto: JBS/ Divulgação

O caso do banco Itaú/Unibanco é ainda mais escandaloso. No mesmo dia em que divulgou um lucro líquido de R$ 13,9 bilhões no primeiro semestre de 2019, o banco anunciou um Plano de Desligamento Voluntário (PDV) pelo qual pretende demitir 6,9 mil bancários. Em uma conjuntura com 12,8 milhões de desempregados, a instituição mais lucrativa do país vai priorizar demissões de trabalhadores com mais de 55 anos afastados por doença do trabalho, em estabilidade após retorno de afastamento pelo INSS, ou integrantes de Cipa.

Ao comemorar o crescimento de quase 9% em relação ao ano anterior e exultar a aprovação da reforma da Previdência em primeira votação na Câmara, o presidente do Itaú, Candido Bracher, fez uma declaração que soa como uma bofetada na cara de boa parte da população endividada e desempregada e cada vez mais distante de uma aposentadoria digna: “as reformas deixam o Brasil em uma situação tão boa como eu nunca vi em minha carreira”, disse em uma teleconferência de imprensa. Talvez o país melhorasse um pouco se Bracher pagasse os quase R$ 30 milhões que o seu banco deve para a Previdência.

Presidente do Itaú

Outro mistério que a PGFN não esclarece é sobre o montante de dívidas à Previdência, números usados pelo governo inclusive na elaboração da PEC 06/2019 e que servem de munição para aqueles que defendem a reforma da Previdência sob o argumento de que o sistema seria deficitário.

A Procuradoria informa que o estoque da dívida ativa previdenciária é de R$ 510,3 bilhões. A própria PGFN, no entanto, por meio de informações de sua base de dados demonstra que as maiores dívidas das empresas com a seguridade social totalizaram, em novembro de 2018, R$ 1,055 trilhão.

ENTREVISTA | Anelise Manganelli

“Reforma é fundamentada em dados contestáveis”

De acordo com a economista e técnica do Dieese, Anelise Manganelli, mestre em economia pela PUCRS e integrante do grupo de estudos EcoFem, da Ufrgs, o valor superior a R$ 1 trilhão considerou somente os débitos de PIS, CSLL e Cofins de empresas que devem mais de R$ 150 mil. Como a maioria das empresas devem valores menores, o total de receitas que deixam de entrar para a seguridade devido à sonegação pode ser muito superior ao valor constatado.

“Antes de exigir sacrifícios dos trabalhadores com uma reforma da Previdência que corta benefícios de quem ganha menos, o governo deveria cobrar uma contribuição para o ajuste fiscal dos que estão no topo da pirâmide de riqueza. É o caso das grandes empresas, bancos, financeiras, redes de varejo, grupos de comunicação e mais de 200 empresas de investimentos que acumulam dívidas ativas superiores a R$ 150 mil por CNPJ com a Previdência” ressalta a economista nesta entrevista.

“Entre os deputados e senadores eleitos em 2018, 15 parlamentares, da bancada ruralista estão devendo cerca de 90% dos R$ 17 bilhões devidos pelo agronegócio à Previdência”

“Entre os deputados e senadores eleitos em 2018, 15 parlamentares, da bancada ruralista estão devendo cerca de 90% dos R$ 17 bilhões devidos pelo agronegócio à Previdência”. Foto: Igor Sperotto.

Extra Classe – A proposta de reforma da Previdência usa dados distorcidos e argumentos falsos para justificar a alteração no sistema de seguridade social do país. Quais informações não batem com a realidade?

Anelise Manganelli – A PEC 06/2019 apresenta uma justificativa enviesada, uma vez que ignora um conjunto de elementos que determinam a capacidade de manter a Seguridade Social, uma das políticas públicas mais antigas e que já passou por inúmeros ajustes para se adequar ao perfil populacional. A proposta de reforma é fundamentada em dados contestáveis, e um deles é a dívida das empresas junto à Previdência, que totaliza R$ 1,055 trilhão.

EC – Como chegou a esse montante de R$ 1,055 trilhão?

Anelise – Os dados foram fornecidos pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e indicam que as dívidas de empresas com a seguridade social atingiram, em novembro de 2018, o total de R$ 1,055 trilhão. Esse total é composto por: R$ 484,3 bilhões relativos a débitos de contribuições previdenciárias dos empregadores e dos segurados, contribuições devidas a terceiros, assim entendidos outras entidades e fundos, e a contribuição para o salário-educação; R$ 228,6 bilhões são débitos de PIS e Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL); e R$ 342,1 bilhões referem-se ao não repasse da Contribuição para o financiamento da seguridade social (Cofins).

EC – Por que a PGFN afirma que o estoque da dívida ativa previdenciária é de R$ 510,3 bilhões?

Anelise – A Procuradoria trabalha com o valor de R$ 510,3 bilhões, mas não fornece detalhes e como a busca é por CNPJ, o cidadão não consegue listar todas as dívidas que compõem esse valor. Possivelmente trata-se do conjunto de dívidas possíveis de serem cobradas, conforme a classificação feita pela própria Procuradoria.

EC – O que deprecia o orçamento da seguridade?

Anelise – A depreciação recente do orçamento da seguridade advêm de diversas vertentes, a queda do PIB, as políticas de austeridade (que reduzem a base contributiva), o aumento do desemprego (que em 2014 era de 6,1% e atingiu 13,1% em 2018), as renúncias fiscais, as desonerações tributárias e a Desvinculação de Recursos da União (DRU). Em 2017, foram R$ 287 bilhões em renúncias, sendo que o orçamento da seguridade em 2017 fechou com resultado negativo de R$ 56 bilhões (de acordo com dados da Anfip).

Até 2015, o resultado da seguridade era positivo, tendo registrado em 2015 superávit de R$ 13 bilhões. Somente em 2016 e 2017 registram-se resultados negativos – quando houve queda do PIB de 3,55% e 3,48%, respectivamente. E se nossa economia tivesse crescido 2%? Certamente, o resultado seria outro.

EC – Esse valor pode ter sido subestimado?

Anelise – No montante dos débitos de PIS, CSLL e Cofins foram consideradas somente as empresas que devem mais de R$ 150 mil, portanto, o total das dívidas deve ser ainda maior. Considerando a estrutura empresarial brasileira, em que a maior parte dos estabelecimentos é de pequeno porte, deve haver um contingente significativo de débitos desprezados.

EC – Como a PGFN classifica os devedores?

Anelise – As dívidas junto à Previdência recebem uma classificação pela PGFN quanto ao tipo de inscrição do débito, conforme Tabela 1. Verifica-se que 73,3% do débito está classificado “em cobrança”, o que, de acordo com a PGFN, indica que o débito está em situação irregular, e a PGFN está buscando patrimônio do devedor para saldá-lo; e 17,5% do total é classificado como “Benefício fiscal”, que trata de débito parcelado.

Nesta situação, o pagamento é mais ou menos moroso, a depender da quantidade de parcelas concedidas pela lei que instituiu o programa de parcelamento. E nos casos de parcelamento, vale destacar que muitos programas de parcelamentos previdenciários no Brasil são longos (diferente de outros países), podendo chegar a 240 meses de duração, bem como da longa tramitação dos processos judiciais, com todos os recursos que lhe são inerentes. E além disso, se concede descontos de até 90% sobre multas e juros.


Arte: Anelise Manganelli/ Dieese

EC – Quem são os grandes devedores da Previdência?

Anelise – Ao analisar os grandes devedores com a classificação “em cobrança” (aquela que está se buscando patrimônio), verificam-se empresas ativas, conhecidas e que registram lucros significativos nos últimos anos, caso de bancos como o Itaú, e/ou empresas de investimentos como a J&F Investimentos, que possui em seu portfólio empresas como a JBS (líder em processamento animal) – que em 2018 fechou com lucro de 563 milhões – e ainda outras empresas como Flora (líder em segmentos de limpeza doméstica e higiene pessoal), Eldorado (grande empresa de celulose) e o Banco Original (100% digital) – todas empresas que vêm registrando lucro no último período.

Há, pelo menos, nessa lista de devedores à Previdência, mais de 200 empresas de investimentos. Entre as empresas com dívidas classificadas como “Benefício fiscal” está a Havan (lojas de departamento), com crescimento importante de faturamento nos últimos anos, e chama atenção também o fato de o seu proprietário, Luciano Hang, ter passado a integrar a lista de bilionários da revista Forbes na edição de 2019. (Nota: Em 1999, a Havan foi autuada pela Receita Federal em R$ 117 milhões e em R$ 10 milhões pelo INSS por sonegação e recorreu a um financiamento da dívida por meio do Refis, com prazo de 115 anos).

Entre os grandes devedores que alegam não ter dinheiro para pagar dívidas fiscais estão empresas empresas ativas, conhecidas e que registram lucros significativos, como os bancos Itaú (lucro de R$ 13,9 bilhões no primeiro semestre de 2019) e Original, a holding J&F Investimentos, dona do frigorífico JBS que teve lucro de 563 milhões em 2018.

EC – São sonegadores, portanto?

Anelise – O direito de discutir uma dívida ou questionar é assegurado constitucionalmente, e muitas vezes se estende por décadas. E há a dificuldade em cobrar aqueles que praticam fraude ou ocultam patrimônio para se livrar de suas obrigações fiscais. Esse é mais um dos gargalos do sistema tributário brasileiro, que potencializa o quadro de devedores, mas esse é um argumento que corrobora a importância e urgência de uma Reforma Tributária no país (que não é a mesma coisa que simplificação tributária).

EC – Por que a PEC da reforma é limitada e não efetiva?

Anelise – O governo, ao defender a PEC 6/2019, justifica que uma ação para enfrentar esses desafios foi o envio do projeto de Lei 1.646/19 ao Congresso, em março. Contudo, o projeto tem muitas limitações, pois não acaba com o Refis e indica acabar com débitos do agronegócio, por exemplo – de acordo com a Federação Nacional das Empresas de Serviços Contábeis e das Empresas de Assessoramento, Perícias, Informações e Pesquisas (Fenacon), entre os deputados e senadores eleitos em 2018, 15 parlamentares da bancada ruralista estão devendo cerca de 90% do montante de débitos desse setor (R$ 17 bilhões).

O que deixa muitas dúvidas sobre a efetividade desse projeto, podendo servir apenas como um argumento vazio, sendo necessário algo mais detalhado e abrangente. (Uma mudança no substitutivo da reforma da Previdência pode abrir brecha para que o perdão de dívidas do Funrural seja aprovado no futuro pelo Congresso).

EC – Por que a reforma não mexe nos Refis?

Anelise – No Brasil, nos últimos 18 anos já se concedeu quase 40 programas de refinanciamento, conforme divulgado pela Secretaria da Receita Federal, e que prevê parcelamentos para as dívidas das empresas, que variam de 60 a 180 meses, tendo alguns até sem prazo definido, enquanto a média, em outros países é de 12 ou 24 meses, conforme estudo da OCDE.

O Refis brasileiro é um incentivo para a geração de débitos e funciona como um financiamento mais acessível monetariamente. Nesse aspecto, a PEC prevê limitar por cinco anos (60 meses) esses programas, o que não parece razoável com base na cultura brasileira e as experiências internacionais, porque representa quase três vezes mais que o máximo concedido em outros países.

EC – Por que o governo não cobra os devedores da Previdência?

Anelise – O governo reitera que a cobrança dos devedores não soluciona a questão da Previdência, porque se trata de estoque e o problema da Previdência é de fluxo. Contudo, não é bem assim, a cobrança e ações que inibam o incremento de novos e maiores devedores ajudarão a compor as soluções de longo prazo e solucionam as de curto prazo para que haja o planejamento e discussão adequada pela sociedade na mudança de uma política pública centenária, como a da Previdência.

A classe trabalhadora sabe que não é isso que vai resolver. A classe trabalhadora quer trabalhar, mas não consegue emprego, quer um emprego formal, mas acaba dependendo da informalidade para sobreviver.

EC – Qual o impacto da desocupação e do desemprego?

Anelise – Por exemplo, no mercado de trabalho brasileiro, em 2018, de acordo com Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar/IBGE, registrou-se 92 milhões de ocupados. Sendo que 33,6 milhões não contribuíram para a Previdência Social. Portanto, quase 37% da população ocupada.

Repare que não se falou em desempregados, que seriam mais 12 milhões de pessoas, falou-se somente em ocupados. Em um caso hipotético, se todos os ocupados pudessem estar devidamente registrados, com contribuição para a Previdência, com base em um salário mínimo, essa medida resultaria em aproximadamente R$ 134 bilhões por ano para a Previdência. E, nesse caso, não se trata de estoque e, sim, de fluxo.

"A cobrança adequada dos devedores poderia dar um pouco mais de fôlego para a elaboração e implementação das políticas de impacto no mercado de trabalho"

“A cobrança adequada dos devedores poderia dar um pouco mais de fôlego para a elaboração e implementação das políticas de impacto no mercado de trabalho”, afirma Anelise Manganelli. Foto: Igor Sperotto.

EC – Ou seja, não gera empregos e, além de não gerar emprego, o governo não cobra os devedores.

Anelise – A cobrança adequada dos devedores poderia dar um pouco mais de fôlego para a elaboração e implementação das políticas de impacto no mercado de trabalho. O equilíbrio financeiro da Seguridade Social não requer a criação de novos impostos e tributos, no curto prazo. A retomada da economia com a recuperação dos empregos e o cumprimento dos artigos 194 e 195 da Constituição Federal (CF) de 1988 – o que nunca ocorreu desde 1989 – seria a decisivo.

EC – O financiamento da seguridade social é justo com os trabalhadores?

Anelise – Para o trabalhador importa que ele paga os tributos que financiam a seguridade social, seja através do seu contracheque, recebendo uma remuneração “menor” em função do pagamento da cota patronal que o empregador deve pagar (sim, porque o empregador inclui como custo do trabalho), ou seja diretamente ou quando adquire produtos e/ou serviços, uma vez que eles estão embutidos nos preços – contrariando o previsto na Constituição Federal, artigo 195, que diz que cabe às empresas, e não aos clientes delas, o repasse de recursos cobrados sobre seu faturamento bruto.

EC – Por exemplo?

Anelise – Um exemplo é a conta de luz, na qual o trabalhador vê destacado o imposto para a seguridade. Muitas empresas, por sua vez, não repassam essas contribuições por entendimentos diversos, disputas judiciais, e, para o trabalhador brasileiro, restaria, a pedido do governo, um esforço que significa prolongar significativamente seu tempo de contribuição, sem a garantia de conseguir um trabalho, e reduzir substancialmente o valor da sua aposentadoria. Portanto, não parece correto exigir dos trabalhadores tais sacrifícios, enquanto os verdadeiramente ricos e privilegiados na sociedade, os que estão no topo da pirâmide de renda e riqueza, são poupados de qualquer contribuição para o ajuste fiscal.

 

Fonte: Gilson Camargo – Extra Classe